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sábado, 01 maio 2021 21:51

O milagreiro da Angónia - O centenário de Luís António Ferrão

O centenário de Luís António Ferrão O centenário de Luís António Ferrão

A Páscoa da redenção e das misericórdias serve para intermediar as estações do ano, na nossa latitude. Entre luares e equinócios, o frio da lembrança e da saudade, se reveza com o calor das colheitas, prosperidades e emoções. Estes os cruzamentos e os caminhos dos tempos, das raízes familiares, das linhagens e memórias dispersas; desejos sonhados. Este o centenário, neste Abril de tantas revelações, tantas alegrias e tristezas para à família Ferrão. Este ano celebraremos a trajectória do milagreiro da Angónia, efémero e saudoso enfermeiro, o Milagreiro dessa distante e setentrional Angónia.

Os centenários são comemorações raras. Pomposas, pelas circunstâncias, alegres, pelas recordações, de cânones religiosos, pela essência familiar, pelas utopias de uma identidade de uma miscigenação agigantada pelos continentes. Centenários transportam as cargas e amarras de um DNA que retorna às origens, se dispersa pelas longitudes e se desnuda por outras latitudes e conglomerados. Por estas e todas outras razões, devemos ousar evocar um dos mais nobres e distintos membros da família, Luís António Ferrão (LAF), tio Luís, Avó Luís, enfermeiro Ferrão.

Nos resumos e encurtamento de rotas, temos a consciência das omissões de factos e nomes. Nem será, jamais, intenção, palmilhar a caminhada de LAF. Este o ónus dos exercícios de memória. Ainda assim, adoraríamos dizer em três palavras, a grandeza da sua nobreza, a inflexível educação e a sólida postura profissional e liderança familiar.

Luís António Ferrão, foi filho primogénito de António Gonçalo Ferrão e Maria Paulina Figueira. Nasceu em 28 de Abril de 1921, no Degue, e com seus pais cresceu lá pelas terras de Canjanda, província de Tete. Não tardou para que tivesse outros dois irmãos mais novos, Clara Gonçalo Ferrão e Gonçalo António Ferrão. O triunvirato, que se uniu diante das vicissitudes e procurou seu espaço e pedaço. 

Luís tem um significado que em muito se assemelhava às suas características originais. Combatente e ilustre guerreiro. Alguém célebre e que viveu para os combates e guerras. Não me recordo se ele fez parte de algum exército, mas, a sua vida foram combates sucessivos para equilibrar sua família, para cuidar de seus irmãos mais novos, enfim, para cuidar de tantos sobrinhos que se firmaram e forjaram como outros filhos de uma linhagem consanguínea e colateral, de árvores genealógicas que cruzaram todos os vínculos e graus.

LAF assumiu, desde tenra idade, a educação e condução moral e ética dos seus mais novos irmãos. Como tutor, iluminou e deu rumo sobre os caminhos que estes deveriam seguir. Os resultados continuam tão evidentes hoje, como o serão para outros tantos séculos. Formação cidadã e católica, emanadas de rigor e responsabilidade que se associaram ao desempenho profissional e familiar. Este, eventualmente, o maior feito de LAF, se alguma vez fosse feito um ranking do seu legado.

Depois de um bem-sucedido curso de enfermagem, dos estágios que a profissão impunha, fixou residência na então Vila Coutinho, posteriormente, Ulonguè. LAF maturava e deixava para trás uma infância e juventude de campo, para quem ambicionava uma vida mais cosmopolita. Vila Coutinho proporcionava esse prazer e ambição.

Angónia era o bastião da sociedade Nguni, da ancestralidade de Mossurize e do trono de Muzila. Nas premissas destas matrizes culturais, a riqueza era colocada na perspectiva da posse de gado e da capacidade de suster e alimentar uma família alargada e robusta.

LAF assumiu e mesclou estes traços culturais e neles agregou os traços da civilização, de uma sociedade colonial que assimilou os locais e conferiu direitos e deveres específicos. Casou com Latina Chide, subsequentemente, com Agina Jange e, finalmente, com Margarida Frank. Desta triangulação conjugal, se fizeram para o mundo seus filhos e filhas. Orgulho de uma família que cresceu, multiplicou e engrandeceu a linhagem de um histórico nome das elites do vale do Zambeze.

Estes filhos tiveram a oportunidade de prosseguir seus estudos nas melhores escolas da época, no local, ou em outras cidades de Moçambique. Era uma visão paternal, que abria o espaço para que todos desfrutassem das mesmas oportunidades. A chama que iluminou gerações e fez deles universitários e intelectualmente forjados para a vida. No mesmo diapasão, os filhos dos seus irmãos Clara e Gonçalo, tiveram essas oportunidades.

Portanto, ele não apenas tratou de fazer uma família extensa, com o mesmo amor paternal, exerceu sua enfermagem com perícia e se viu embrenhado em cirurgias de pequena e média montra. Eram assim os enfermeiros dos outros tempos. Quis a vida que se tivesse convertido, igualmente, em criador de gado e agricultor comercial, naquilo que poderíamos considerar de “horas remotas”, mas que na realidade foram sempre uma conciliação do útil, com o todo necessário.

LAF será lembrado como enfermeiro e milagreiro da Angónia. Para as sociedades como as nossas, cuja persistência de estruturas mentais nos subjugam em outros valores, ter uma formação em saúde, equivale a chegar ao topo das profissões.  Então, entre a modernidade e o tradicional, ele foi esse milagreiro e efémera “gente grande” de Angónia. Alguém que curou e serviu milhares de pacientes, de almas que procuraram um outro suspiro, enfim, de todos quanto prolongaram suas vidas graças aos seus tratamentos. Esta a imagem que perdura e que os beneficiários jamais poderão esquecer.

Por detrás dos milagres esteve sempre a vontade de empresariar. Fazendo parte dos eleitos locais, o milagreiro sempre teve um talento especial para o empresariado, esse mercado agro-pecuário e mercados transfronteiriços. Angónia estava à escassos quilómetros, e só uma pequena estrada dividia os dois territórios. Mas, essa foi outra forma de se afirmar na vida e na forma ecléctica que escolheu para eternizar seu percurso terreno.

Cada um de nós, sobrinhos, teria uma lembrança especial do nosso tio para este centenário. Bonifácio, quem sabe, se recordaria das lições e exemplos que copiou para se firmar como médico. Luísa foi registada por ele e bebeu amor inicial desse pai sem limites. Chica Maurício passou algumas férias na Angónia, entendendo outra dimensão da fé e do mundo. Glória guarda outras facetas, relacionamento multidimensional de uma família gigante. Ricardo Trindade e seu irmão Afonso foram outros adoptados pela família e que guardam, certamente, todas as extraordinárias recordações de uma perfeita comunhão. Os irmãos Inácio e Anastácio Ferrão, beberam muitos ensinamentos daquele centro familiar. Nando ou Fernandinho, Nico, Dinho, etc., cada um a seu tempo e espaço, desfrutou dessa mão paternal exigente e rigorosa; serena e acolhedora. Em comum, porém, nos recordamos de uma fala mansa e a gaguez, firmeza no médico familiar e consistência na obrigatoriedade de colocar toda a família no melhor da educação formal.  Sonho meu, sonho meu, da Gal Costa, era sua música predilecta e cantarolava em direcção as suas propriedades agrícolas. Mais que um sonho, era uma realidade feita harmonia dos versos.

A Tia Clara, a única viva dos três, teria um rol interminável de histórias para se recordar do seu irmão centenário. O respeito e a formalidade faziam com que a parte liberal fosse mais comedida. Abusava e provocava o Gonçalo, seu irmão mais novo. Assim, sucede com todas as famílias. Mas, esse tempo de infância e juventude os uniu para a vida e eternidade.

Do Gonçalo, a maior recordação era dos tempos em que faziam roupa e usavam a máquina de costura para fazer as suas próprias vestes. À distância, falava com orgulho do seu irmão Luís que detinha gado, e que os sobrinhos poderiam, um dia, ter uma cabeça, como se o gado fosse imutável e tivesse de viver décadas, aguardando pelos seus donos e improváveis proprietários.

Anos mais tarde, e em momentos de Páscoa, LAF partiu para a eternidade. Sua peregrinação foi honrosa e digna. Viveu na plenitude de suas faculdades e proveu, com o melhor e com o essencial à seus filhos e netos.

Jaze na Angónia, que a transformou como sua e lá realizou suas mãos notáveis obras. Teve um funeral com os rituais locais. Uma cova profunda e uma gaveta que evitaria que fosse lançada terra para a superfície do seu vistoso caixão. Essa memória foi recordada pelos seus irmãos, Clara e Gonçalo, que acharam que a profundidade da cova, conferia um estatuto de Rei das profundezas, depois de ter sido milagreiro da vida e da  Angónia. (x)

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