Relatos de 23 mulheres raptadas que escaparam das bases de rebeldes no norte de Moçambique revelam um grupo organizado que recruta crianças soldado e dá indícios de traficar raparigas para o estrangeiro, segundo um novo estudo.
"O que nos leva a levantar essa hipótese é a quantidade de mulheres que foram raptadas", sobretudo em 2020, refere João Feijó, investigador do Observatório do Mundo Rural (OMR), organização não-governamental (ONG) moçambicana.
Há relatos de "centenas de mulheres" raptadas durante o ataque de há um ano a Mocímboa da Praia, "a mesma coisa em agosto" quando a vila foi tomada e da mesma forma noutros ataque, lê-se no trabalho "Caracterização e organização social dos 'machababos' [insurgentes] a partir dos discursos de mulheres raptadas".
"Se formos somar [todas as ocorrências], atingimos largas centenas de mulheres, o que levantaria um problema logístico de alimentação e exposição do próprio grupo em termos militares", sustenta.
Por outro lado, "há o testemunho das meninas mais bonitas que ao fim de uma sessão de doutrinação vêm dizer às colegas que foram selecionadas para ir estudar para a Tanzânia".
O investigador e a equipa do OMR acreditam que o seu destino são redes de tráfico de mulheres que se estendem até à Europa e Golfo Pérsico, pelo que o estudo sugere, entre outras medidas, um reforço do controlo de fronteiras.
As mulheres raptadas que estiveram nas bases de insurgentes viram ainda "crianças e adolescentes a fazer treinos militares e lutas com catanas", bem como "jovens há dois e três anos" no grupo, "ansiosos pela sua primeira missão".
Uma das mulheres relata o caso de um rapaz de 14 anos "que tinha vindo da sua primeira missão" e que estava "feliz" e "realizado" por ter assassinado e degolado alguém.
A situação levanta incógnitas para o futuro: "quando a guerra terminar vai ser preciso um grande esforço de reintegração social e desradicalização destas pessoas. É importante pensar no que fazer", destaca Feijó.
Os relatos das mulheres raptadas mostram ainda um grupo mais bem organizado do que o habitualmente descrito junto da população.
"O grupo é vendido pela comunicação social como um conjunto de vândalos e bandidos, mas eles estão muitos mais preparados do que aquilo que pensamos. Andámos a subestimar este grupo durante muitos anos", realça Feijó.
Têm acesso a tecnologia, informação e especializações profissionais: há pessoas dedicadas a telecomunicações, filmagens, há enfermeiros, mecânicos e outros só dedicados à ação militar, refere.
O olhar por dentro da insurgência revela também um grupo heterogéneo, com estrangeiros ortodoxos, uma classe média moçambicana viajada, com influências da Tanzânia, e uma massa jovem recrutada em Cabo Delgado "que estão lá por raiva e revolta em relação ao Estado".
"Este grupo foi capaz de recrutar a Renamo social [Resistência Nacional Moçambicana, principal partido da oposição]", ou seja, aqueles "que se relacionam com o Estado por oposição, que têm um sentimento de revolta histórico".
Os relatos mostram ainda tensões internas, com julgamentos sumários e decapitações de comandantes dos próprios rebeldes.
O relatório de 21 páginas termina com sete recomendações para quebrar o que Feijó classifica como um "círculo vicioso de violência".
"Num contexto de conflito armado, as populações estão entre a violência dos rebeldes" e a "desconfiança das Forças de Defesa e Segurança (FDS)".
"Esta pressão mútua leva-as a fugir dali, para sul da província, onde se deparam com ajuda insuficiente e injustiça social, o que as empurra novamente para movimentos violentos e o ciclo continua", descreve.
Segundo João Feijó, a resposta militar "está a gerar mais violência e injustiça e a alimentar estes grupos" de insurgentes.
"É preciso muito dinheiro para apoiar as pequenas atividades económicas destas pessoas todas" que fogem do conflito, promovendo "integração económica", a par de mensagens claras de implementação de um Estado de Direito", com acesso à justiça e espaço para participação social sem recurso à violência.
Num nível mais prático, o estudo defende "a constituição de alianças fortes e obtenção de apoio internacional, particularmente com os países afetados por ataques terroristas, implicando a cooperação no patrulhamento de fronteiras, partilha de informação e de serviços de investigação criminal".
"O controlo de fronteiras será fundamental para prevenir o tráfico internacional de mulheres, o abastecimento logístico, a fuga de militares ou o financiamento de organizações violentas", conclui.
Grupos armados aterrorizam Cabo Delgado desde 2017, sendo alguns ataques reclamados pelo Daesh, numa onda de violência que já provocou mais de 2.500 mortes, segundo contas feitas pela Lusa, e 700.000 mil deslocados, de acordo com dados das Nações Unidas.
O mais recente ataque foi feito a 24 de março contra a vila de Palma, provocando dezenas de mortos e feridos, num balanço ainda em curso.
As autoridades moçambicanas recuperaram o controlo da vila, mas o ataque levou a petrolífera Total a abandonar por tempo indeterminado o recinto do projeto de gás com início de produção previsto para 2024 e no qual estão ancoradas muitas das expetativas de crescimento económico de Moçambique na próxima década. (x) SIC