Em entrevista à DW, o analista Énio Chingotuane sublinha que, na base da renitência ao engajamento de tropas estrangeiras, está o receio de uma possível perda de controlo: "Mercenários são mais ou menos controláveis".
Diante dos últimos acontecimentos ocorridos em Palma e da crescente ameaça à região norte de Moçambique, Filipe Nyusi diz que está a avaliar a possibilidade de aceitar ajuda militar internacional. Contudo, o chefe de Estado sublinha que prefere que tal não aconteça em nome do "sentido de soberania”.
Em entrevista à DW, Énio Chingotuane, pesquisador do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais da Universidade Joaquim Chissano, acredita que na base da renitência do país à entrada de grupos militares internacionais na região está o receio de uma possível perda de controlo e um engajamento indireto dos terroristas que pode advir.
O analista defende que as Forças de Defesa e Segurança moçambicanas têm conseguido debelar as ações dos grupos armados, mas que precisam de capacitação.
DW África: Como encara o "sentido de soberania” evocado por Nyusi para justificar a preferência pelo não envolvimento militar internacional no combate aos ataques armados?
Énio Chingotuane (EC): Até agora Moçambique tem sido reticente quanto à ajuda internacional porque ainda não definiu muito bem qual é o tipo de engajamento que a comunidade internacional devia ter. O pressuposto que vinga até agora é que há de haver uma intervenção externa que vai atuar fora do âmbito de atuação das Forças Armadas e parece que as autoridades moçambicanas não estão a conseguir distanciar-se do conceito de intervenção e do conceito de apoio militar.
DW África: Quais os receios do Estado moçambicano?
EC: Quando o Estado moçambicano olha para o ator externo como interventor, fica com receio que este possa livremente aturar e começar a criar distúrbios em relação a aquilo que são os esforços do Estado. O que o Estado gostaria que acontecesse é que viesse uma força, mas que essa força estivesse sob umbrella das Forças Armadas moçambicanas. Receia-se que possam criar mais problemas ao Estado no sentido de não obedecerem ou tomarem decisões unilaterais no campo de batalha. Poderá fugir ao controlo do próprio Estado, o receio está aí.
E existe também outro receio associado: Moçambique teme que, ao admitir a entrada de forças estrangeiras, possa também [viabilizar] que as forças terroristas sejam também apoiadas por forças estrangeiras. Os terroristas vão escalar em termos de apoio financeiro externo, apoio em termos de armamento e em termos de homens.
O governo moçambicano olha de uma perspetiva de self-help, em que não olha para a cooperação internacional com bons olhos, pelo menos na cooperação enquanto engajamento de uma força externa. O que o governo gostaria de ter é apoio logístico, apoio financeiro, apoio em treinamento, materiais de comunicação, etc, que lhe possa habilitar e ser capaz de combater sozinho as ameaças. O modelo que gostaria de ver vingar é este. Um modelo que não faz "muito barulho”, em que poderão ser engajadas forças estrangeiras, mas sem que seja feito um alarde. São dois dilemas que estão na mesa.
e formos mapear o que tem acontecido em outras partes do mundo, a experiência tem mostrado que forças externas não têm sido tão produtivas e tendem a estender o conflito. E isso Moçambique gostaria de evitar. Os exemplos que tivemos em África do engajamento estrangeiro, deixaram o Estado assustado. Moçambique prefere conter a insurgência com as suas limitadas capacidades - fazendo um trabalho, não vou dizer perfeito, mas minimamente aceitável - do que admitir forças estrangeiras que poderão agravar a situação no terreno.
DW África: Mas acaba por preferir contratar empresas militares privadas ….
EC: Porque as empresas de segurança privada, mercenárias, são mais ou menos controláveis. O Estado pode abdicar da sua presença e pode controlar os seus movimentos dependo da capacidade financeira. Se o Estado deixa de pagar a empresa terá de abandonar. O receio do Estado em admitir forças armadas estrangeiras está nesta inabilidade de controlá-las e tornar a sua intervenção mais perniciosa do que aproveitável. O Estado pensa que se tem um resultado minimamente aceitável hoje, prefere continuar com esse resultado do que arriscar um resultado que não estará ao seu alcance e que poderá contribuir para a derrocada de um país que pode ser considerado estável.
DW África: Depois do último ataque em Pemba diversos países têm oferecido apoio militar. Acredita que o país poderá ceder - também perante novas ameaças - ou está determinado em afirmar-se nesse campo?
EC: Se Moçambique ceder vai ser a contragosto porque não é – mesmo depois do ataque em Palma – desejo da liderança moçambicana que o país se abra a esse tipo de contribuição. O Estado moçambicano está aberto para todo o tipo de contribuição, mas dentro daquilo que acha aceitável e controlável. E não uma abertura geral a tudo aquilo que possa aparecer. O Estado prefere que sejam equipadas as forças de segurança para que elas ajam.
É preciso perceber que Moçambique é um dos países mais pobres do mundo e não devemos nos esquecer o que significa um exército de um dos países mais pobres do mundo. Mesmo assim temos que dizer que Moçambique tem feito, de 2017 até hoje, um trabalho razoável no que se prende ao combate ao terrorismo em Cabo Delgado. Pelo menos, as Forças de Defesa e Segurança (FDS) têm conseguido debelar as ações e causar enormes baixas naqueles grupos. Tem comprovado que não é uma questão de necessidade de financiamento. É uma questão de limitadas capacidades materiais, de recursos como armamento e comunicações, o que impede que o país vá mais além do que aquilo que tem sido feito.
A lógica não é ajuda externa, mas incrementar a capacidade das FDS, porque já mostraram que têm capacidade, no mínimo que têm, de fazer frente às ameaças.
DW África: Na sequência da última cimeira, a Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) anunciou o envio de "uma equipa técnica" a Moçambique. Acha que poderá ajudar na definição das necessidades do país no combate aos grupos armados?
EC: Se a SADC comprar esta perspetiva de Moçambique, de que precisamos de contribuições, sim, vamos ter algo positivo. Mas se a SADC insistir em fazer engajamentos militares acho que não vamos ter resultados palpáveis, porque Moçambique vai resistir, tenho certeza disso.
DW África: Quando diz que provavelmente Moçambique poderá resistir ao apoio da SADC, poderá haver interferência de questões do passado, nomeadamente com a Tanzânia por exemplo?
EC: Nem por isso. A Tanzânia já foi de grande ajuda para Moçambique durante 16 anos. Nós temos um histórico de dívida e gratidão para com aTanzânia. Há sim hoje uma certa fricção entre estes dois Estados, mas não será esse o facto que vai fazer com que Moçambique tome a decisão que vai tomar em termos de ajuda militar.
É mais uma questão operacional e tático. Nós estamos bem estrategicamente. Agora precisamos de meios e capacidade operacional para poder resolver o problema. Moçambique tem, e comprovou, as capacidades para poder debelar o problema. O que falta são meios. Dêem-nos os meios que resolveremos o problema. Não queiram vir nos substituir na resolução do problema. A lógica é essa.(x) Fonte: DW