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segunda-feira, 04 outubro 2021 11:41

As crianças-soldado de Cabo Delgado

A organização Human Rights Watch denunciou esta semana que terroristas recrutaram "centenas" de crianças e rapazes para combater as forças moçambicanas. "Disseram-nos que tínhamos que matar", conta sobrevivente.

"Eu estava escondida dentro de casa quando ouvi a voz dele e chequei o lado de fora da janela. Vi-o com um grupo de cerca de outros doze meninos, todos a vestir calças de camuflagem e com uma faixa vermelha à volta da cabeça".

O dia 24 de março foi uma das últimas vezes que esta mulher moçambicana viu o filho de 17 anos. O rapaz foi raptado por terroristas em Cabo Delgado no grande ataque armado a Palma, no norte de Moçambique.

Os atacantes armados encontraram a sua família de sete pessoas numa quinta, onde se tinham escondido durante dois dias dos combates.

"Eu estava de joelhos a implorar aos Mashababos [o nome popular local para os grupos terroristas] que me levassem no seu lugar, enquanto a minha mulher agarrava as calças do meu filho para o impedir de se ir embora", conta o pai do jovem.

"Um dos homens bateu na cabeça da minha mulher com uma AK-47 [espingarda] para a forçar a libertar [o nosso filho], enquanto o outro homem ameaçou matar-nos a todos se não deixássemos o rapaz ir", contou. 

A família de sete membros estava escondida numa quinta, quando foi atacada pelos terroristas. A mãe viu o filho mais uma vez em maio antes de deixar Palma em busca de refúgio.

Centenas de raptos

Estes relatos foram colhidos pela organização internacional de direitos humanos Human Rights Watch (HRW), que denuncia o recrutamento de crianças-soldato por terroristas do Al-Shebab, ligado ao grupo "Estado Islâmico", para engrossar as fileiras de combate contra as forças governamentais.

Na quinta-feira (29.09), a organização relatou que o grupo armado já raptou centenas de rapazes, que recebem treinamento em bases em toda a província de Cabo Delgado e são forçados a lutar ao lado de adultos contra as forças do Exército moçambicano.

Entre os raptados, há crianças de apenas 12 anos de idade. Em Palma, os pais relatam terem visto os seus filhos com armas nas mãos quando regressaram com os combatentes para invadir aldeias.

"Usar crianças para o combate é cruel, ilegal e nunca deveria acontecer", disse Mausi Segun, diretora da HRW para África numa nota. "O Al-Shebab de Moçambique deve parar imediatamente de recrutar crianças e libertar cada uma delas das suas fileiras", exortou.

A HRW destaca que as ações dos terroristas violam a proibição internacional do uso de crianças-soldado.

O relato de uma antiga criança-soldado

Um jovem relatou à HRW que foi raptado a 18 de abril de 2020 junto com dois amigos de 16 anos numa aldeia durante o ataque a Mocímboa da Praia.

O rapaz disse que os terroristas discutiram a possibilidade de decapitar os três, porque tinham um estilo de cabelo alegadamente contrário às regras do Islão. Mas, por fim, decidiram forçá-los a caminhar com os olhos vendados pela floresta até uma base do Al-Shebab em Mbau. 

"Juntamo-nos a muitos outros rapazes e meninos e fomos treinados sobre como usar armas e facas no combate. Disseram-nos que tínhamos que matar e lutar pela nossa terra e proteger nossa religião, que está sob ataque em Moçambique", contou a antiga criança-soldado.

O jovem conseguiu escapar um mês depois durante uma patrulha, mas vive com medo constante de ser novamente capturado pelos terroristas.

Treinos militares em Mocímboa da Praia

Duas mulheres disseram que o grupo terrorista raptou os seus filhos em Mocímboa da Praia, em agosto de 2020, quando a cidade portuária foi tomada.

Três outras mulheres contaram à HRW que conseguiram escapar de uma base do grupo terrorista em Mbau, onde há "centenas de rapazes". "Comportam-se como homens adultos, escolhendo mesmo 'esposas' entre as raparigas raptadas", disse uma das entrevistadas.

Outra mulher raptada em março, em Palma, e que conseguiu escapar relatou que foi levada com centenas de mulheres e rapazes em três camiões para Mocímboa da Praia, onde foram mantidos em cativeiro.  

"Os rapazes foram levados para treino militar em Mbau e Macomia. Após o treino, foram trazidos de volta para receberem aulas islâmicas e instruções para atacarem as aldeias", disse.

Graves violações

O Protocolo Facultativo das Nações Unidas à Convenção sobre os Direitos da Criança, relativo ao envolvimento de crianças em conflitos armados, proíbe grupos armados não estatais de recrutar crianças menores de 18 anos. O documento foi ratificado por Moçambique em 2004.

O recrutamento, alistamento ou utilização ativa de crianças com menos de 15 anos de idade em hostilidades ativas durante conflitos armados é classificado como crime de guerra pelo Estatuto de Roma.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) considera a utilização de crianças em conflitos armados uma das piores formas de trabalho infantil.

"O uso crescente de crianças como combatentes pelo Al-Shebab é o último capítulo horripilante da violência em Cabo Delgado. As autoridades moçambicanas devem tomar medidas urgentes para proteger as crianças, para que permaneçam com as suas famílias e na escola, e para não sejam exploradas como armas de guerra", afirmou Mausi Segun, diretora da HRW para África.

Em junho de 2021, a organização humanitária Save the Children estimou que grupos armados raptaram pelo menos 51 crianças, a maioria raparigas, durante o ano de 2020 em Cabo Delgado.(x) Fonte: DW

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