Padre Couto celebra mais um aniversário. Oitenta e duas (82) primaveras. Ele prefere designar por outonos. Tempos de incertezas e pandemias sociais. Poucos concidadãos, com a sua idade, continuam tão eloquentes, lúcidos, coerentes e com a mente tão brilhante e clarividente como a sua.
Seu positivismo foi transformado nos últimos anos. Seus recursos visuais se incapacitaram. Cegou e está impossibilitado de ler. Como um guerreiro, que sempre foi ao longo da vida, desde aqueles tempos de revendedor de sapatos, ali na cidade de Nampula, ele buscou soluções. Agora, afirma, ler mais que todos nós.
A incapacidade visual estimulou outros sentidos. Pelos pés consegue descrever os cenários e consistência do chão que pisa, pela voz reconhece o estado de espírito de seus interlocutores, pela audição interpreta os acontecimentos nacionais, pelo tacto redefine a qualidade das matérias, e pelo olfacto resignifica o resto.
Ao longo de anos, Padre Couto tem sido um fiel pregador. Missionário que jamais alegou santidade absoluta. Admite que comete pecados. Todos os seres humanos, também, os cometem. Quem vive erra, e só o deixa de fazer quem já não se encontra no nosso seio. Não troca o contexto da prova ou descoberta pela Fé. A sua Fé transcende a humildade, sua própria simplicidade e todos os argumentos que coloquem em xeque a espiritualidade, e as crenças do seu povo. Essa dualidade que sustentou gerações e glorifica Deus.
Mas, o Padre Couto, vocativo e de língua fácil, aprendeu o sentido e o poder do silêncio. Age silenciosamente, quando o silêncio parece ser a melhor solução, ou em tom mais exuberante e retaliatório, sempre que sente que a injustiça fala mais alto que a racionalidade. Uma espécie de advogado de múltiplos clientes.
Sua retórica ajustada e perspicaz tem um único destinatário. A verdade. Opinião franca e honesta baseada na sua longa vivência e carreira. Esta frontalidade fez muitas amizades e alguns poucos detractores. Natural que assim seja, nem mesmo Cristo agradou a todos. Ele sempre recorda aquele provérbio da sua antiga terra, Niassa, onde começou a entender o mundo, que dizia algo como, “ quantas mais verdades disseres, mais amigos vais perder”.
Padre Couto continua com uma invejável e inquestionável lucidez. Mistura, na mesma frase, todas as línguas que a sua memória permite armazenar. Procura encontrar os melhores significados para saber transmitir. Ele tem dom e um domínio linguístico invulgar. Quase a roçar a excelência do poliglotismo. Uma espécie de cidadão do mundo. Alguém que se comunica com quem quer que seja.
Cresceu no seio dos Yaos e emakwus, daí para o Swahili foi um pequeno e diminuto passo. Com um substrato parental de língua portuguesa, cultivou o seu latim e faz questão de o praticar todos os dias, ou, não fosse, a base epistemológica e da cientificidade. Aprendeu alemão, italiano e inglês, como línguas académicas e de trabalho.
Vive de forma simples e modesta. Sem medos e nem receios. Um modelo de vida platónico e socrático. Admira Nyerere e o modelo socialista Udjamma. Modelo social de semelhantes oportunidades para todos. Veste as causas dos missionários da Consolata. Tem os seus colegas em seu coração e admiração. Admira os Jesuítas. Exalta seu papel na libertação de Moçambique. Postura emancipatória. Eles intercederam evitando sua excomungação, ainda nos primeiros anos de sacerdócio.
Como missionário de causas, cruza-se, com frequência, com a política. A política não se pode sobrepor a normalidade da vida, da comunidade e da cultura. Nessa tríplice política, comunidade e normalidade, ele aceita a esperança como factor primordial.
Padre Couto ganhou várias distinções nesse longo percurso de académico, missionário e governação universitária. Com orgulho ostenta o segundo grau da “Ordem Samora Machel”. Esse líder com quem, muitas vezes, confrontou suas ideias e visões. Soube apontar as falhas de governação. Samora aceitou e soube corrigir. Não estava à espera de elogios.
Nessa vida de altruísmo e dedicação ao país e à reconciliação nacional, ele procura o bem-estar das crianças e quer ajudar os jovens a fazerem parte dos esforços pela reconciliação nacional. Por isso conversou com todos, incluindo Afonso Dlakhama. Por isso, aceitou fazer parte da comissão que debateu a paz. Foi relevante seu papel. De projecto em projecto reencontra o prazer de viver, apoiar e salvar. Enxergar, no amor ao próximo, essa alegria que os olhos já escurecidos ainda lhe conferem.
Como professor ele faz parte de um notável e limitado grupo de intelectuais moçambicanos, com dois (2) doutoramentos cursados, sendo o primeiro em Teologia, na Universidade de Munster Westphalia, na Alemanha, recorrendo aos métodos axiomáticos de lógica matemática. A sua tese, na época, era “Salvação de toda a humanidade, incluindo os que não professavam o catolicismo”. O segundo doutorado em ciências políticas e ética em relações internacionais, na Universidade Paderborn, também, na Alemanha.
Frequentou com muito sucesso, na universidade Urbaniana, em Roma, na Itália, uma graduação e pós-graduação em Filosofia, com uma dissertação baseada em filosofia da natureza, com método lógico axiomático. Filosoficamente, Padre e Professor Filipe Couto é um “Post neo escolástico”.
Ele faz, então, parte desse distinto e selectivo grupo de moçambicanos pioneiros que se doutoraram, ainda no período colonial, incluindo Kamba Simango e Eduardo Mondlane, nos EUA.
Para além de uma visão nacionalista e humanista, ele foi antigo combatente da Luta de Libertação Nacional. Mas, ele é sobretudo um "Catequista Revolucionário", e um filósofo e matemático proeminente e actuante.
Pelas suas mãos tivemos a experiência da primeira revolução curricular introduzida em Moçambique, quando como Reitor da Universidade Católica, fez um apelo ao " Modelo de Créditos Académicos". Depois, ensaiou a Declaração de Bolonha, sem muito sucesso. Eram claras as intenções, porém, desfavoráveis às condições reais.
Filipe Couto é o modelo de Pessoa que faz parte da “Era da Desobediência”, criando rupturas disruptivas, alertando o que aí vem sem se anunciar. Essa é a característica que nos habituou e que nos orgulha. Feliz aniversário. (x)
Autor: Jorge Ferrão